terça-feira, 19 de julho de 2022

 Ateliê de contos

Conto #2


Na chamada pelo Zoom, decidiu colocar o nome inteiro. Assim, nome, nome do meio e sobrenome. Seria impossível ele não lembrar.

Estava arrumada, escolheu um copo melhor para colocar a cerveja. Era uma brincadeira do grupo, falar sobre cinema como se estivéssemos num boteco. Alguns bebiam suco, água ou café. E quando eu podia, caprichava no vinho branco, geladinho, bom para o começo de fevereiro.

Era quarta-feira de cinzas. O grupo estava mais vazio. Umas 9 pessoas. Mas o filme, quando finalmente saímos do circulo de filmes japoneses, era um bom Almodovar. Sinceramente, não lembro qual deles. Mas era dos bons. 

A conversa começou, como sempre, pela resenha da Marília. Era uma delícia o modo como ela trazia o filme todo, em minutos, com comentários livres, engraçados e sempre feministas. 

Depois, Emilio, ponderado mas também falante, pontuava aspectos importantes. 

Um dos membros, o Hirata, doutor em cinema, professor e palestrante, era sempre aguardado com nossos cadernos nas mãos. Uma enciclopedia. Um cara que sabia muito e era super generoso. 

O Sérgio era do grupo dos quietos. Que o Emílio nunca deixava sair sem falar. 

E ele trazia sempre muitos apontamentos filosóficos. Dava uma sensação de que a sabedoria do filme estava ali, exposta por ele, que só tomava água.

Eu era nova no grupo. Acho que era minha terceira vez. E a segunda que conseguia abrir a câmera.


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Ateliê de contos

 A chuva insistia. Ele pegou as chaves. Trancou o apartamento e se esqueceu de fechar as janelas. Louças na pia, cama desarrumada, gavetas abertas, a tevê ainda ligada. Difícil controlar a raiva. Quase quebrou o câmbio e amaldiçoou o carro velho. Colocou a mesma música de sempre, há dias ouvindo a mesma música. Detestava fumar mas era preciso. Sabia que o carro ficaria ainda mais fedido. Levou uma fechada no trânsito e gritou bem alto: puta que pariu, seu corno filho da puta, vai tomar no cu. Por sorte o sinal abriu, tinha medo dos brutamontes fazendeiros com aqueles carros enormes. Acelerou mais ainda. Pensou nas multas e disse: foda-se! Não queria ir. Não queria. De jeito nenhum. Anos de terapia para chegar naquele momento e se cagar de medo? Medo de quem? Estacionou o carro velho, ajeitou o paletó retirando restos de cinza do cigarro. A ansiedade era visível. Sentia o estômago queimando. Tentou respirar devagar e não adiantou. Maldita hora em que resolvou atender o telefone.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Onde foi que nossa conversa parou?

No meu aniversário, em 2015, postei: "Este espaço de escrita ficou fechado por alguns anos.
Seria o caso de retomá-lo?
Ou apenas descartar, fechar as portas e seguir para outro, reconfigurado?
Toda uma história se apresenta aqui que ainda interessa mensurar, tocar de perto.
Então, sigamos.
Onde é que nossa conversa parou?" E retomo, hoje, com a mesma pergunta-convite, neste blog que agora posso tratar como blog vintage, disco de vinil, com os melhores ruídos durante a música.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Colcha



A melodia é um transporte fácil. As músicas da paixão funcionam como um alucinógeno fraterno. Eu dou início, desde os primeiros raios, ao ensaio da alegria. O sol desenha um borrão, que mal identifico após o sonho. O sonho bom é um incômodo. Faz a realidade desastrada. Sonhei você, sonhei a casa, sonhei o quadro visto da janela. Imagens velhas de cozinha antiga.Imagens desejadas, de orvalho polvilhado sobre o tapete verde da folhagem. Sonhei recortes óbvios das propagandas, quando o trem nos leva até os arredores de Paris, na primavera. Os sonhos me deixam cansada. Toda semana verifico a loteria e fortaleço a lição da perda. É tão fácil perder. É tão fácil perder o que fomos. É tão simples desistir da felicidade que quase conquistamos. É tão fácil a embriaguez da noite nos bares, nas boates, nas rodas quentes de amigos rápidos e roupas escolhidas para mentir. A loteria me trouxe você. Era um bilhete premiado. E agora, somos apenas duas pessoas cansadas. Que conferem diariamente a perda. E que fazem uma maquiagem caprichada. Usando cremes para evitar o grito das rugas. Usando roupas iguais aos dos filhos, para preencher o medo. Enquanto isso, eu sonho. E em algumas noites, sou uma senhora velha, com os cabelos grisalhos, descendo pelas espáduas, em duas tranças. Uma índia, uma autóctone, uma pessoa feliz, compartilhando com você o silêncio dos premiados.

Poema de amigo: Marcelo Novaes




Lungu Alina Ada






Minha pai e meu
mãe mandaram: encha
de frutas este caderno; faça
do pomar um poemário.

E eu aprendi a
ler nas entre
-safras.






Marcelo Novaes

https://esteeodardo.blogspot.com.br

Passagem

·        

Meninas se enfeitam para o velório/
afinam as vozes/
relembram as canções/
Meninas se despedem do homem no velório/
cúmplices, esboçam um sorriso/
Meninas se retiram do velório
e de mãos dadas saltitam nas poças de água/



Foto de Tomoyoshi Sakamo

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

NAS ASAS DA ESPERA




Por Eliana Mara Chiossi.
foto-aeroportoTodo dia, o sol vem iniciar a rotina no aeroporto. Verdade? Não. Aeroportos nunca param. Sempre encontrei neles algum consolo para noites de insônia. Quando nada mais resolvia, descia até a garagem, entrava no meu carro, colocava música alta e saía cantando pelo asfalto. Até chegar, estacionar e parar no primeiro café.
Dependendo da época, havia voos domésticos noturnos. E sempre era possível, também, encontrar passageiros aguardando voos noturnos internacionais. Outros, dormindo, espalhados pelo chão, como se estivessem numa guerra, porque perderam voo, porque perderam a hora. Uns agarrados aos outros, ajeitados como podiam. Enquanto isso, funcionário indo e vindo. Gestos de formigas. Sem parar, num frenesi. Era sempre possível encontrar exceções. Funcionários quase dormindo, dependendo da função. E aqueles cujo dever era estar alerta. Taxistas conversando, aguardando passageiros. Tripulação chegando. Atendentes das lojas de alimentação. Funcionários de lojas de câmbio.
Ainda é escuro, mal o sol começa a raiar, e tudo se acelera. Um filme cuja rotação se transforma em outra. Faço um giro completo, noto a movimentação por todos os lados, gente entrando e saindo. O mesmo aeroporto repleto de mais vidas, mais histórias, mais pensamentos, mais rumores.
Nesse dia eu estava tão confusa que não sabia o que fazer da vida. Voltar para casa me obrigaria a tomar banho, combinar a arrumação da casa com a empregada, resolver cardápio para Sofia e ir para o trabalho, onde me aguardava, com dentes ferozes, reuniões aborrecidas. Decidi decretar feriado para mim. Desci para o portão de desembarque e fiquei observando as pessoas. Aquelas que chegavam. E as que aguardavam. Cada cena de encontro me fazia pensar em coisas das vidas alheias e da minha também.
Eu estava sem rumo. Não sei quanto tempo fiquei ali. Saí para tomar outro café. A mocinha que me atendeu tinha aparência de muito cansaço. Tive pena. Enquanto aguardava, vi a nota fiscal do cliente anterior. Não sei se era homem ou mulher, mas tomou um café espresso e comeu um cheesecake de goiaba. Tentei imaginar quem era. E me pareceu que fosse um homem. Precisando de um espresso forte. E uma boa dose de açúcar para compensar. Tomei meu café com leite e voltei, tentando encontrá-lo. Sim, era um homem.
Olhei para o quadro onde anunciavam os voos. Naquele terminal só a Azul teria voo próximo, mas chegaria às 8:15. Eram 6:00 ainda. E ouvi quando um homem alto, bem vestido, quase formal, perguntou ao funcionário se haveria atraso. O funcionário fez cara de espanto e garantiu que até o momento não poderia dizer nada já que o voo só decolaria de Guarulhos as 6:35. O homem, envergonhado, pediu desculpas e se afastou. Ficou distante do portão. Seus gestos eram impacientes, ansiosos. Seu corpo mostrava uma derrota, desistência, algo assim. Ombros largados, cabeça abaixada. Quando olhava para o portão, quando chegava mais perto, o olhar era triste. Trazia papeis numa pasta. Quando finalmente o voo chegou, era visível seu nervosismo, e eu estava hipnotizada. Queria saber o que ele estava vivendo. Começou o desembarque, e ele se reaproximou do portão. Depois de muito tempo, o desembarque foi encerrado, e mais ninguém saiu. Seu corpo estava sem movimentos. Sua expressão era intraduzível. Eu me aproximei e perguntei se estava tudo bem, se ele queria ajuda, se queria uma água ou um café, se não achava melhor sentar um pouco. Ele me disse, sem me ver:
– Não sei ainda. Não sei.
Até que o celular dele tocou. Quando atendeu, pude ouvir uma voz de mulher dizendo: “Eu desisti, Daniel. Eu não tive coragem. Eu não quero mais o divórcio. Vamos tentar de novo”.
Ele não respondeu. Colocou o celular no bolso da camisa. Então me viu. E me abraçou.

Foto: Eliana Mara Chiossi e intervenção do fotógrafo Gaspar Reis

ORIGINALMENTE PUBLICADO AQUI:  http://coletivocatarse.com.br/home/nas-asas-da-espera/

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Como seria retornar?

Este espaço de escrita ficou fechado por alguns anos.
Seria o caso de retomá-lo?
Ou apenas descartar, fechar as portas e seguir para outro, reconfigurado?
Toda uma história se apresenta aqui que ainda interessa mensurar, tocar de perto.
Então, sigamos.
Onde é que nossa conversa parou?

sexta-feira, 13 de julho de 2012


MIRA, para Sandro Ornellas


Eu fotografei a mala
Na volta da viagem impossível
fiz o inventário do que me pesava e
atravancava os passos e o caminho.

Eu fotografei a sala
não porque rima
mas porque foi neste cômodo
que olhei 
peça por peça
cada pérola 
do meu tesouro.

Eu fotografei a vala
a rima aqui é necessária
pois é o fim 
de quem transpõe a sala
cheia de malas
e seus piratas.


Eu fotografei a falha
o viés, a fruta podre, a sopa rala.
Pesei, ponto por ponto, 
a minha fala
e ouvindo,
de todos os sinos,
um chamado,
mirei exata a curva ladra.

Eu fotografei a data,
e fiz ensaios,
valsa emendada,
a dança torta,
a velha estaca,
o grito rendado 
furos no espaço.

Eu fotografei a bala,
seu movimento,
função datada,
a sua cor, seu peso e fardo,
cada centímetro do 
seu tamanho, ofício e prazo.
Até o momento
em que a bala
correu tão solta
e me fez:
nada.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A roda



Deixo cair um pingo colorido
na folha branca
e este é meu ponto de partida.
Finco neste ponto, exato,
uma estaca e
faço um giro prévio com a corda nova.
Ao redor deste mundo, recém desenhado,
fecho os olhos
para que os pés encontrem as fronteiras.
Eu sou a minha própria mãe
e crio também uma imagem para o pai
que serei
um dia.
Sou agora a deusa dos metais
e vou forjando
no calor intenso
escudo, lança e flechas.
O ventre está seco,
aprendo a sonhar com as guerras.
Retiro os livros que contam histórias
de mulheres quietas
esperando boiarem feijões defeituosos
esperando que o vento
esperando que o sangue
esperando que o homem.

Na hora do parto,
uso a faca afiada e
me separo,
em duas.
E estas, multiplicadas,
até chegarem ao número necessário
de um exército
sem memória
sem choro
sem lamentos
sem bordados imóveis.

Um exército de outras
mulheres
que sou,
até que eu não veja mais o horizonte
coalhado de cópias de mim mesma,
para seguir
em formação militar
em busca dos livros
das cantigas
dos mitos
onde
uma mulher adormece
uma mulher espera
uma mulher grita
uma mulher grita
uma mulher grita.

E eu, e elas todas que sou,
marchamos,
prontas para habitar outra ficção
outro começo
vamos agora
divertidas
querendo ditar mais de dez mandamentos
querendo deixar os cabelos crescerem antes de sermos crucificadas
querendo dividir os mares todos ao meio
querendo dominar a divisão dos quartos das espécies que residirão na arca.

Nossa história,
na língua nova que criaremos,
começará assim:
no início havia uma mulher e seu umbigo,
e ela começou a criar navios
e por isso inventou os mares
e pediu luz para suas navegações.

No início, era escuro.
Mas elas chegaram, armadas.
E gritaram o mundo outra vez.

Rio de Janeiro, madrugada, Eliana Mara Chiossi

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Mudança de endereço

Talvez uma enchente que provocou desabamentos,
Talvez briga entre vizinhos,
ou o desejo de ter um jardim na frente da casa,
quem sabe até a chegada de outro filho,
e muitas outras alternativas
poderiam explicar,
e nada diria do que me faz
comunicar que
este Mundo estará aberto para visitações.
Não é gentil que os amigos
cheguem aqui e batam com a cara na porta.
Mas a partir de hoje,
se quiserem um pouco do que escrevo
favor seguir para este endereço:
http://dasalmasdestemundo.blogspot.com/

Agradeço, carinhosamente, a todos os seguidores, visíveis ou invisíveis, deste mundo ou de outros.
Com toda a gratidão,

Eliana Mara Chiossi

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Texto de meu amigo Nuno Ribeiro


nem saúde nem sustento

É fácil pensar que a única solução é ter um emprego, sujeitarmo-nos às condições que ali encontrarmos e irmo-nos aguentando, mesmo se sobra pouco tempo e pouco dinheiro para viver, depois do tempo que se gasta a trabalhar e do dinheiro que se gasta para sobreviver. Difícil, pelo menos para mim, é imaginar outra forma de viver. É fácil fantasiar sobre ter uma quinta, sobreviver com o que a terra dá, ser autónomo e livre. Difícil, pelo menos para mim, é sair da segurança estagnada para o relento da liberdade.

Porque faço a pergunta a mim próprio, muitas vezes, "afinal, porque continuo, porque me sujeito a isto, todos os dias da semana?", pergunto-me porque continuam as outras pessoas, porque se sujeitam todos os dias as pessoas a uma escravidão suave, em que recebem dinheiro e não são chicoteadas, mas em que tudo está feito para a sua subjugação, tudo conspira para manter as pessoas com rédea curta, obedientes e acéfalas. Porque me sujeito eu, porque nos sujeitamos nós?

Não é suficiente a resposta mais óbvia e sensata: porque não nos podemos dar ao luxo de ficar sem emprego e sem sustento. Não é suficiente. Há-de haver qualquer coisa nas entranhas, no profundo da nossa psique, algures dentro de nós, algum impulso para a procura de felicidade e bem-estar. Não quero aceitar que tenhamos tão grande, que eu tenha tão grande, capacidade para fazer da insatisfação um ofício e do engolir de raiva uma arte. Não quero acreditar que não haja uma criança, um rebelde, um sonhador, algo de luminoso e exigente, dentro do que somos, que esteja disposto ao risco de ser feliz - muito mais do que à garantia de infelicidade.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Montagem 2

Um cego quer saber o que é uma rosa.
Começo a buscar um caminho para descrever uma rosa, ainda não vista, antes que o cego possa tocá-la.
Entrego em suas mãos uma pedra. 
Para explicar a rosa por contraste.
Se o vento toca a pedra ela desce. 
A rosa, que é feita de partes, em partes, voa, ao toque do vento.
Então, diferente da pedra, a rosa é pura abertura.
Se a vemos fechada, no início, botão ainda, isso é truque para enganar pessoas apressadas. 
Véspera da festa generosa, em que todos os portões serão abertos. 
O cego revira a pedra nas mãos, aperta, testa a sua superfície e textura. 
A rosa não se entrega assim, uníssona. 
E ao tocar todo seu conjunto, o cego saberá que a beleza da rosa está protegida. E este conjunto é uma metáfora: a dama que não pode ser alcançada antes da superação. Caule com espinhos, obstáculos para testar os motivos. 
Para que chegar ao cerne da rosa, se não for para admirar e, depois, compartilhar?
Mas como chegar ao cerne da rosa sem desmontá-la, sem entender que no final, a rosa é seu próprio vazio?
Dizer ao cego que a rosa é uma beleza de pedaços. Uma beleza montada. Entregar a rosa desmontada,
retalhos de veludo, regularidade nas formas, cada pétala tão semelhante. 
Sem aceitar a insignificância aparente deste conjunto espalhado, não há como entender a beleza da rosa inteira.  

domingo, 4 de setembro de 2011

Montagem

O copo jogado no chão, espalha partes variadas do que era. Ao ser lançado, com a força de humores alterados, o copo resta em pedaços. Alguns, maiores, ainda trazem a aparência de um copo. Talvez a parte redonda, mais grossa, do fundo. Ou então, a borda, pela sorte, resistente. O mais, são pedaços pequenos, detalhes incompletos, escrita interrompida, uma frase que perdeu toda a sintaxe. O corpo do copo, desfeito, tem partes ilusórias, ao lembrar semelhança com outros objetos feitos do mesmo vidro. Vidro, vida frágil, sempre. O copo, sem noção, espalhado no solo, distante demais de algum retorno.

Modelo

A chuva chega até mim como o exercício de desenhar o nu, fixado na memória.
O nu, exposto aos meus olhos, para o registro fiel, se move e desvia minha atenção, porque respira.
Modelo ao vivo, a chuva cai sem repetições. 
Quero captar seus movimentos, enquanto ela se manifesta, quase indiferente.
A trama do vento é quase polêmica. 
Pedra no caminho do desenho.
O vento passa e são os pensamentos do modelo vivo. 
Pensamentos que retiram o olhar que já era um traço definido.
A chuva fustigada pelo vento é corpo que viaja para longe, sem que eu possa
desenhar o contorno desta alma.
 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Corredores

Importa responder em que cidade você mora? Será sempre uma cidade que residirá no espaço dos seus dias. Uma cidade nova com luzes novas. Uma cidade nova e comportamentos semelhantes. Onde reside o mistério da distância. O frenesi diário pode ajudar você a esquecer. E a diluição está garantida.Você preenche fichas, frequenta igrejas, anda rápido, vê as ofertas das vitrines e é capturado por muitas armadilhas que brilham. A cidade dorme e acorda. E você faz parte do desfile diário. Roupas para lavar, louças para lavar, o que vamos comer, onde vamos esticar a noite, o que comprar, o que jogar fora. Descartável, cada dia se repete, e todas as histórias possíveis já foram vividas. Não há mudanças ou cidades novas. Você é sempre isso: resíduo, precariedade e várias versões da ilusão.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Nada

Se fosse possível dividir o nada
em pedacinhos.
E então, mirá-lo, bem de perto, quase tocá-lo.
O nada chega assim, inteiro,
um bloco todo branco,
bloco de gelo, parede sem discurso.

E o nada quer passar
pela garganta
mas não há como mordê-lo
menos ainda mastigá-lo.

Fica assim, o nada entalado,
boiando no ar
sem endereço
o nada me acompanhando
sombra mais que silenciosa,
o nada,
onipresente,
Deus é o Nada,
quando o Nada se apossa de mim
e leva embora a fé
que nunca tive.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

Começando um conto

No dia em que ela chegou para morar na nossa rua, era meu aniversário. Eu me lembro porque o caminhão de mudança atrapalhou a chegada da Kombi com os recreadores. Meu aniversário de dez anos e aquela menina querendo tirar o brilho da minha festa. Só muito tempo mais tarde fui entender que ela, Tânia, iria salvar minha vida.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Pavão

Me irrita um pouco a insistência do sol.
Diariamente, sem falhas, funcionário metido a besta,
querendo se exibir para o patrão,
este patrão sempre em viagens,
o sol, funcionário puxa-saco,
que não falta nunca ao serviço.

Me irrita mesmo este sol
em dias que chega disfarçado,
com auxílio de um trio de nuvens sorrateiras
ou então, espalhafatoso,
puro pavão.


Me irrita este sol,
sempre aqui,
sempre exibido,
sempre me dizendo
que ganhei mais
um dia.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

I.M.L

Eu andei desaparecida por uns tempos. E os via, em cada esquina, procurando restos do meu corpo. Ou rastros. Ninguém viu quando eu saí de casa, mas me lembro de ter batido a porta, com força. Lembro bem que ao bater a porta com força, fez-se um barulho. E começaram a procurar meu corpo, imaginando encontrá-lo aos pedaços, no freezer; visitado pelas moscas, no quintal de uma casa abandonada; crivado de balas no lugar ermo; sem a cabeça, ao lado de uma carta. Eu estava sem dar notícias há tanto tempo, e eles começaram a dizer que me conheciam e talvez até sentissem falta do barulho que eu fazia. Assim, desaparecida, eles lembraram de abrir a porta do quarto onde eu vivia. E tudo que queriam saber estava ali.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Natureza morta

Olhar para a fruta. Dar fome a este olhar. Deixar que o olhar tome posse da fruta. Observar sua aparente imobilidade. A fruta está em movimento. Movimento das cores, movimento das células. Até que se torne outra coisa, sua própria morte anunciada, a podridão invasiva, invertebrada.