Os acontecimentos
naquela casa
Tentando fazer um cálculo rápido, usando estratégias para
multiplicar o número de janelas horizontais pelo número de andares, querendo
chegar a um valor numérico aproximado, multipliquei pelo número de famílias,
usando cinco como uma média razoável. Cinco pessoas em cada janela. Mas nesse
conjunto habitacional da periferia de São Paulo, onde minha tiA ‘estava
morando, feliz por ter se livrado do aluguel, dentro de um financiamento com
juros baixos se comparados com os juros de agiotagem que os bancos cobravam, os
apartamentos mínimos eram habitados por famílias numerosas, com seus agregados.
Todo dia, praticamente, chegavam pessoas com malas e sacolas, vindo de outros
bairros ou outros estados. Muitos nordestinos, vindo do ciclo perverso do
êxodo. Então, se a média ficasse entre cinco e oito, o cálculo se alterava.
Perdi as contas mas já eram milhares. Na lógica do formigueiro, era madrugada
quando saiam dos buracos, carregando folhas e pedrinhas, pesos maiores do que
os corpos. Essas formigas caminhavam, sob o efeito de uma alucinação. O sono
interrompido. A noite mal dormida. O cansaço acumulado. Um exército obediente,
em fileira ordenada, em direção aos espaços de tortura, nos subempregos, em
condições precárias, com as marmitas chacoalhando nas mochilas surradas. Passar
o final de semana na casa da minha tia era um tempo de descanso. Ali, a ordem
da minha mãe não vigorava. Ali eu podia até estudar, distante da infância em
que essa mesma tia exercia sua tirania e violência. E no apartamento mínimo e
arrumadinho, tudo limpo e organizado, com cheiro bom de mãos zelosas, eu
conseguia até dormir melhor.
Algum resquício de culpa fazia com que minha tia se
desdobrasse em carinho. Fazia comidas boas. Fazia um manjar com calda de
ameixas, que eu gostava tanto mas que em casa era substituído, para meu
desgosto, pelo pudim de leite de minha mãe. Era o melhor pudim de leite das
redondezas, as vizinhas pediam a receita e voltavam para obter dicas, nem
sempre funcionava da primeira vez. Queriam saber qual era o segredo. Eu não
poderia me dar ao luxo de perder uma sobremesa. E comia, com enjoo, o pudim de
gosto horrível. Eu detestava tudo naquele pudim. E detestava ainda mais o fato
de minha mãe sempre fazer o mesmo pudim. Com o valor dos ingredientes, seria
possível fazer o manjar, minha tia sempre dizia isso pra minha mãe. E a
resposta era sempre a mesma: se a Esther é enjoada e não gosta, que coma menos,
sobra mais.
Minha tia gostava muito de comer bem. E descobria lugares
bons com preços baixos. Pelo menos uma vez no mês, quando recebia o salário, me
convidava para comer fora. E a alegria de ver minha tia comendo e tomando sua
cervejinha me ajudava a esquecer a tia da infância. Na situação em que eu
vivia, essa conta fechava bem. Mais tarde fui entender esses pactos que eu
fazia. Aprendi a negociar para resistir. Aprendi a me aproximar do sequestrador
e demostrar afeto por ele. Sempre com a esperança de que a violência fosse
reduzida. Os dias de ficar na casa da tia Rosa eram dias de alívio, dias de
alguma alegria.
Aos dezessete anos, frequentava muitos espaços de arte e
aproveitava, com meus amigos, aproveitar o que a cidade oferecia. Campanhas de
gratuidade, convites, carteirinha de estudante. Tudo que nos permitisse ver
filmes, óperas, peças de teatro, eventos, palestras, shows. Muitas vezes os
ônibus para nosso bairro acabavam e era preciso esperar até o dia amanhecer
para chegar em casa. Sempre avisei em casa. Não podíamos pagar por uma linha
telefônica. Era preciso confiar. E eu era uma adolescente confiável. Me
surpreendeu muito ter chegado cansada e faminta em casa e ter sido recebida
pela fúria de minha mãe. Aos berros, ofendida e destemperada, usava palavrões
para criticar minha vida: você está parecendo uma puta, vive com esses amigos
drogados, com essa historinha de movimento cultural, movimento cultural é o
cacete, desculpa esfarrapada para fazer merda, e nessa casa quem manda sou eu e
se você não seguir minhas regras pode pegar seus paninhos de bunda e ir embora.
Respondi, mais cansada do que a fim de entrar na briga, que eu não estava
mentindo, que já tinha avisado, que o movimento era importante, e antes de
falar mais recebi o tapa, que deu início a um domingo de horror. Foi no quarto,
quando eu tentava trocar de roupa, enquanto ela gritava, que tudo aconteceu.
Ela trancou a porta, já com o cinto grosso do meu pai. Lá fora, minhas irmãs
batiam na porta, pedindo que ela abrisse. Eu sabia que a surra ia ser das
piores. E decidi, com uma sobriedade desconhecida, apenas receber os golpes.
Que vieram sem hesitação. Apanhei muito, sem me mover, sem dizer uma palavra. E
por dentro, repetia para mim mesmo: vou sair daqui.