quinta-feira, 12 de agosto de 2010

No carro

O joguinho no celular distrai. Rói unhas. Busca com a língua um fiapo de carne, que incomoda. Lembra que esqueceu de pagar uma conta. Precisa buscar os resultados dos exames. Não ligou para a família. O carro está sujo. Quer acreditar que o uso regular de drágeas de cálcio vai mesmo evitar a ruína dos ossos. Acha que câncer de próstata é uma invenção nova. Lê o jornal com total desinteresse. O gerente da matriz virá para o processo de reformulação. Teme ser demitido. Aguarda o vôo, em que o gerente chegará, para demiti-lo, talvez. Lembra, com detalhes, da última noite de sexo com a amante. E lembra também com detalhes, da última briga com a mulher. Sinceramente, quer mandar as duas para o caralho. A amante, que se foda com suas ridículas conversinhas na cama, com diminutivos enjoados e umas lingeries de quinta categoria. A mulher que se dane, com a sistemática aporrinhação sobre despesas, filhos e o que se deve fazer para a ceia, no Natal. O filho mais velho, um verdadeiro canalha. O filho mais novo, sempre doente. O filho do meio, morto precocemente. Anunciam atraso do vôo. Deseja, sem culpa, que o avião caia. Por causa do gerente. Pensa nas outras pessoas do vôo e pede perdão silencioso, por este pensamento ruim. Outro café e o alerta do estômago. Sabe que deveria ter pegado os resultados dos exames. Não acredita em câncer de próstata. Vai até o estacionamento. Deixa um bilhete no banco da frente, com as chaves. Usa o celular para mandar uma mensagem. No guichê, reclama pelo preço da passagem. Escolhe um destino qualquer. Ouve a chamada para o embarque.

2 comentários:

dansesurlamerde disse...

muito bom!

beijo.

Carlos Barbosa disse...

Gostei muito do miniconto. Azeitado. Seu blogue tá lincado nos meus faz tempo: beiraderiocorrenteza.blogspot.com e caobarbosa.blogspot.com (o minicontos). Apareça quando tiver tempo. Abr (carlos barbosa)