domingo, 23 de agosto de 2009

Ela mastigava um chiclete velho

Todo chiclete tem um momento de inauguração. Sensibiliza uma parte de seu corpo com sabor adocicado e promete distração por alguns instantes. Funciona para algumas situações e diminui o medo. Mastigar um chiclete pode evitar que você morda o pescoço da senhora bem vestida e cínica. Se você pudesse morder o pescoço da mulher, estaria de volta aos primeiros tempos e isso seria um alívio. Se você, sem chicletes no bolso, pudesse arrancar a orelha esquerda da sua prima perfeita, vendo o sangue escorrer pelo pescoço sem culpa e arrependimentos, isso seria tranqüilizador. Daria a resposta que você procura. Em outras ocasiões, seria adequado enfiar a faca afiada no peito do homem que não telefonou quando você precisava. Você pode enfiar a faca tantas vezes quanto lembrar das ligações que esperou e não vieram. É recomendável que você possa atropelar a sua avó, cruel e manipuladora. Para fazer isso com eficiência, você pode ensaiar antes atropelando alguns tios mórbidos, sobrinhas prepotentes e irmãos desleixados. Na hora que fizer o carro arrancar a cabeça da velha, você pode inventar uma expressão tribal, descer do carro, lambuzar-se com o sangue e tatuar-se de vermelho. Enquanto isso não acontece, até porque alguns personagens já estão mortos e enterrados, você procura um sabor neste chiclete velho e percebe que alguns minutos passaram e a fila não andou. Algum acidente lá na frente faz você perder a hora, a paciência e o perfume. O ar condicionado quebrou, sua conta está no limite e não há dinheiro para este luxo essencial. O encontro com seu pai foi adiado tantas vezes e hoje não há como evitar. Você usa o telefone celular, explica o que não sabe sobre o trânsito parado. Palavras secas, expressões sem desperdício. Ele aguarda. Você tenta executar algum exercício das aulas de meditação. Nenhum funciona. Seu pé que toca a embreagem está formigando. De repente, você percebe que a pessoa que pegou carona está muito quieta, com ar preocupado e sinais de impaciência. Isso dá um impulso na sua agonia. Nenhum carro se move. Você abre a porta, sai andando e não olha para trás.

4 comentários:

Jane Fiuza disse...

que coisa boa de ler! Parabéns!

Patty Diphusa disse...

E começa com um chiclete e acaba bem no estilo carro explodindo nas suas costas e você caminhando, sem um olharzinho sequer. Às vezes é exatamente o meu sonho para que não seja eu a explodr.

Ótimo, como sempre.

Saudades

Manuela disse...

Li, você às vezes mostra esse seu lado visceral, meio mulher-das-cavernas. E eu gosto disso, porque você traz de um jeito natural, como se fizesse parte da sua essência.
Pra variar eu gostei muito.

Beijuzinho

Noslen ed azuos disse...

E mulher ficou muito bom esta crônica (se é assim), bela história; em vez de chiclete sorvei um sorvete imaginário de seu sangue, ah é só pra ñ sair do clima.

bjs
ns