sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Tatuagem: teatro de sombras



A solitária é uma cela. Reservada ao isolamento daqueles que estão turbulentos ou perigosos. Ir para a solitária é ser confinado mais profundamente, isolado daqueles que já estão isolados. Ao final, se pode dizer que todas as celas são imaginárias. Ele me disse certa vez, com uma clareza de arma branca afiada: a cela é sua, mas não está fechada, é sua prisão por vontade. Disse tudo sobre prisões. Se há montagem material de ferros e grades, é uma prisão objetiva, para a qual você se dirigiu depois de estar preso na sua própria solidão.
Ouvimos a notícia sem conseguir acreditar. A cantina estava lotada. Fazia frio e todos estavam ansiosos à espera de bebidas quentes e alimentos calóricos. Aquecer as mãos nas xícaras era uma sensação que me agradava, enquanto ouvia meus amigos comentarem as últimas leituras, os equívocos do professor, os trabalhos pendentes. Jeanne chegou ruiva, cabelos curtinhos e brincos novos. Fizemos uma algazarra carinhosa. A sua feição não combinava com nosso recreio. Estacamos. Congelados por um frio mais intenso que o mês de maio em Porto Alegre. O professor que era nosso amigo e líder, programado para ser o paraninfo da turma havia morrido nesta madrugada, enquanto cada um de nós estava prestes a acordar e vir para o campus. História mal contada. Para mim, ele escolheu a hora de morrer e executou um suicídio perfeito. Gisela era a amante. Todos do seu círculo de amigos sabiam e apoiavam porque a mulher dele era considerada uma megera. Casamento mantido por conveniências e alguma dose de covardia. Deixou os braços da amante, tarde da noite, após a celebração de mais uma palestra memorável. No meio da noite, sem motivos práticos, decidiu que precisaria dormir em casa. Seriam apenas 50 minutos de viagem. Naquele horário, sem trânsito. Sabia, no entanto, que os caminhões estariam presentes na estrada, muitas vezes conduzidos por motoristas mal pagos e com sono atrasado. Um desses entrou na contra-mão. O sono atrasado do professor retardou seus reflexos e não foi possível evitar a colisão. Jeanne estava solitária. Ainda quando a rua estava cheia de gente e ainda quando no seu aniversário a filha tentou ser agradável e o marido se esforçou para ser amoroso. Ao perceber que a cela era sua, fez o que quis e encerrou a frase. Eu ainda não posso entender porque teve que comprar meias novas. Na loja de departamentos, vagou por alguns minutos, sem objetivo definido. Por algum motivo inexplicado, prestou atenção na seção infantil. Fez uma cesta repleta de roupas para meninas de 3 a cinco anos. Enfeites de cabelo, bolsinhas, meias rendadas, camisetas de várias estampas. Vista por algum efeito de zoom anunciava lágrimas. Mas respirou forte. E na fila do caixa, deixou a cesta de roupas da filha que não devia ter crescido nunca, quase que apenas feita de rosas, e selecionou três pares de meia de algodão. Era inverno mesmo. E meias novas era um fetiche especial. No carro, já a caminho, pôs-se a falar sozinha, novamente. De repente, pergunto-me se a depressão que era minha passou a ser meu crachá e você só me vê assim fotografada, neste instantâneo que falha? A depressão tem asas. E um jeito de pousar que não é de pássaros nem de aviões. A depressão não parece um inseto rápido, que aparece no meio da noite quente e se debate próximo da lâmpada. Se fosse um animal, seria quase serpente. Mas não seria rápida, e o veneno agiria tão lento que não seria mais uma cobra venenosa. É réptil e age subterrânea. Porque eu só poderia entrar em contato quando estivesse bem não tive condições de me aproximar mais de você com minha realidade. E isso nos separa para sempre. A melancolia é minha como esta bolsa que uso para colocar objetos vários, dispersos sem ordem, como cartão, identidade, batom sem tampa e anotações inúteis. Se eu decidir deixá-la em algum lugar, para perde-la, alguém vai retirar o dinheiro e os cartões mas algo vai ser devolvido. A carcaça da bolsa, que é a bolsa toda. De volta aos meus ombros, com seus pesos e tranqueiras. Marguerite Duras esperava um homem que a guerra seqüestrou. Havia propósitos humanistas e uma paixão que era feita de ideais de justiça e liberdade. Ela aguarda junto com outras mulheres. Ela ajuda outras mulheres na espera. Mas tudo gira em torno da necessidade vital de ter de volta o corpo desejado. Com os mesmos odores e suores, com os mesmos tiques e cicatrizes, o mesmo tom de voz, o mesmo tom de branco nos cabelos que já foram pretos. O panorama da guerra parece um pretexto. Serviu para dar relevância ao amor, que era apenas uma necessidade dos dois. Quase que biológica. Menos dor e mais prazer enquanto a vida passa, violenta e implacável. Jeanne, desaparecida, adquire contorno de santa. Então, a filha fica demonizada e do marido vemos apenas uma face. Tudo esfumaçado, há o risco de não haver a mesma lógica nas próximas montagens.
Será que você me ouviria, se eu escrevesse? Quem iria ler estes escritos melancólicos se hoje há remédios disponíveis para exterminar a melancolia? Os melancólicos não gostam de ler. Não necessariamente. Fazem parte de estatísticas e não é mais necessário fingir loucuras e desajustes. Alguns neurotransmissores a menos. Algo que se localiza em termos fisiológicos, uma falha biológica. O abismo mapeado. A melancolia entra pela janela do quarto e passa por baixo da porta, mesmo este quarto que funciona bem como uma cela. Como um vento frio e gelado que desrespeita cachecol, casaco e meias grossas de lã. Não há calefação suficiente nem os aquecedores funcionam. Ela vem entranhada. Se acomoda sem convites. E se instala. Fica morando comigo por dias e me censura quando acordo viva. A depressão tira o sabor dos alimentos e inibe meus sorrisos. Os amigos se transformam em invasores. E o mundo fica de cabeça para baixo. Por um tempo, fico uma pessoa altamente sofisticada. Sou desapegada, enfim, para tantas coisas, e isso inclui não ter desejos. Algo que em mim fica superior. Não desejo o carro novo, esqueço das roupas que vi nas vitrines, nenhuma jóia ou perfume caro me atrai. O abraço recôndito de alguém que me ame tem algum valor, mas estou imersa em profundo desprendimento. Então, também não necessito de companhia porque nenhuma companhia me basta. Eu senti o toque quando acordei e sabia que o remédio teria a dose de veneno suficiente. Não foi um ataque, nem teve movimentos de bote. O animal grande e pesado me atacou sem peso. Saltou em câmara lenta, devagar demais, tão devagar que não posso saber quando começou o gesto. Retardou meus movimentos e a câmara lenta ficou instalada, como um chip programado para me definhar. A marca felina tatuou meu corpo e garantiu a posse do território da minha rotina. Os dias vêm e vão e estou tatuada. Inscrita sobre minha pele, provocando reações subcutâneas. Os acontecimentos são medidos como acúmulos nos nós das tripas. Minha ansiedade mora num lugar abjeto, tripas, como esse nome indica: olhe em qualquer açougue, olhe agora, peça ao funcionário que afia uma faca imensa e tem um avental branco sujo de sangue. Ele vai mostrar com cara de desprezo aquele monte jogado sem nenhum cuidado. Lixo com certeza. As tripas dos animais. Vão embora como lixo. E nas tripas do animal que sou moram minhas angústias. E minha ilusão de existência e importância. Na linha mesmíssima de cada vida humana, há alguns momentos de ilusão de relevo. Acontecimentos ou pessoas marcam e designam uma certa importância e utilidade. Destaque na topografia do nada e do efêmero. Ventos de maio. Amanhã vai ser primeiro de maio, em todo o mundo praticamente é o dia do trabalho. E o que isso significa hoje?
Que antes de lutar por melhores salários estamos lutando por trabalho remunerado. E ainda se vende o corpo para alimentar o corpo. O corpo que ao nascer depende de uma estrutura simples, como leite e outro corpo quente. A depressão não foi embora. Ter passado a noite amorosamente, com um homem que me segue com paciência de Jó, me investe de uma vontade débil, mas uma vontade, de existir normalmente. Minha filha desaparece nas brumas de suas rotas perdidas. Isso daqui de longe me machuca. O homem com quem eu queria estar ainda casada está longe e estamos descuidados. O amor vai acabar, vai pegar uma esquina desconhecida e vai se ausentar para sempre. Esta cidade tropical, festiva o ano inteiro, me esgota. E as possibilidades se esgotaram por aqui. Tenho um ano e alguns meses para construir a saída. Ou menos. Estou roendo as unhas e o estomago está em movimento. Queria ser feliz com coisas simples e a vida não me dá descanso. Ou eu não sei descansar na vida e viver mais simples.
Quando a funcionária ligou para o quarto, na hora solicitada, ninguém atendeu e ela olhou novamente o número do quarto. Confirmada a informação, interfonou para uma das funcionárias da limpeza e pediu que despertasse a senhora cansada. A funcionária não foi atendida. Demoraram alguns minutos para decidir entrar no quarto e verificar. Entraram no quarto e verificaram que a senhora estava descansando. Talvez precisasse de mais horas de sono. Dormia tranqüila, de meias novas, de algodão. Algumas horas depois, o gerente entrava no quarto, sem certeza de que a hóspede apenas dormira demais. Na mesinha, viu o que precisava: documentos enfileirados, lista de telefonemas a dar, um recado mínimo ao gerente e o telefone de quem deveria ser avisado em primeiro lugar. E tendo o privilégio de ser a primeira a ouvir a notícia, ouvir a descrição da situação com detalhes mórbidos, Julia desligou o telefone sem conseguir fechar um pensamento. Não sabe quanto tempo se passou até que conseguisse agir. E prefere não detalhar o que fez, mas garante que fez o que era necessário e possível para a retirada do corpo, o velório e o enterro. Ludmila, a filha, exibia sua couraça danificada e um ar de perdida. O marido ficou todo o tempo sentado ao lado do caixão, e deixava o amor contido aparecer num rosto envelhecido e molhado. Se Jeanne estivesse viva, seria uma mendiga paulistana. E andaria pelas calçadas colecionando objetos que acharia como se fossem peças de seu tesouro. Na grande trouxa que levaria, estes objetos, grandes achados, seriam muitas vezes admirados, tocados com extremo zelo e extremo prazer. Prazer infantil, prazer antigo, de colecionar objetos sem função e sem valor comercial. Na colcha você encontraria a disparidade e encontros insólitos de uma borboleta sem a asa direita, enfiada dentro de uma caixa de fósforo. Tampinhas de garrafas, bem coloridas. Brincos, anéis, alguns documentos, cédulas e moedas, palitos de sorvete que traziam cenas de infância feliz e confortável. Jeanne seria a mendiga das calçadas, levando sua trouxa de colecionadora. Sua caixa mágica, seu baú de presentes e esperanças. Jeanne se fechou na caixa, deixando para a coleção daquele motel mais uma história bizarra.

3 comentários:

Roney Maurício disse...

Nova faceta da dona do "Mundo"; à apreciada autora de prosa curta, poética e lírica e à cronista bem-humorada e antenada; soma-se agora inspirada contista.

Que tal um "três em um"?

Anônimo disse...

Você é muito boa!
Sabe? Às vezes, considero me meio que fria , aos sentimentos alheios, mas fiquei triste de verdade com esse conto.
Identifiquei-me.
Muito boa você!
Fez-me ver que não sou tão fria como sonho ser.
Que sonho né?

Anônimo disse...

INTERAGINDO.
Inspire-se à vontade, sinto-me honrada até.
Fria com medo de ser quente.
(é assim que funciona)...