terça-feira, 11 de novembro de 2008

Enchente e desabamento

Toda vez que chegava o inverno era a mesma situação. As chuvas aumentavam, o lugar onde morávamos era inadequado, emissoras de televisão apareciam e algumas mulheres davam entrevistas dizendo as mesmas coisas, ano após ano. Até que meu pai teve um emprego melhor e conseguiu alugar uma casa na qual chovia mais na parte de fora. A umidade era habitante fixo, que não pagava aluguel. Eu sempre tive problemas alérgicos e passei muitas noites no colo de minha mãe, em hospitais públicos da pior qualidade, à espera de um atendimento precário.

Enquanto acordo fora de hora, sinto a atmosfera úmida no quarto. Pingos de chuva entraram pela janela que ficou meio aberta. A chuva concreta me despertou com frio e desejei o conforto do café novo. São cinco horas da manhã e faltam trinta minutos para eu levantar, colocar o uniforme e caminhar até o ponto de ônibus. Não haverá café. Mas se houvesse, eu gostaria que fosse feito por uma pessoa carinhosa. Meu desejo é viver uma cena da novela que só posso assistir aos sábados. A fazenda enorme aparece na cena inicial, mostrando os burburinhos dos empregados. A moça jovem e bonita chega com ar jovial e a pele fresca, trajando um vestido de tecido florido. Os cabelos foram trançados com a ajuda de uma mulher negra. Senta-se à mesa e suspira como se não tivesse fome. Um braço anônimo traz o café fumegante, um close exibe a mesa repleta de iguarias de ótima aparência. Então, as mãos anônimas seriam da minha mãe, que seria feliz, mesmo tendo a rotina de seus dias controlada por obrigações monótonas e inescapáveis. Minha mãe seria de outro mundo. Minha mãe seria gorda, um pouco, porque deste modo e deste tamanho, seu colo teria a dimensão adequada para ser aconchegante. Acho que colo de mãe magra não pode ser aconchegante. Minha mãe estaria feliz às seis da manhã, de uma manhã chuvosa onde já me esperaria o agasalho definido. Faria tranças no meu cabelo sem machucar, me levaria para a mesa. Bolos variados, mingau encorpado, pão quentinho, alguns ovos, poções de carnes discretas, de tudo eu comeria um pouco, devagar, percebendo cada variação de sabor e textura, conforme o ritmo ainda lento do estômago. Sucos de duas frutas e uma vitamina feita com ingredientes que traduziam os desejos de que eu crescesse com saúde. A manteiga bem amarela e convidativa e algumas geléias.

Enfim, aquela seria uma mãe acolhedora e simpática, de bom humor até o fim do dia. A mãe que iria me levar, à noite, um pedaço de bolo e um copo de leite. O copo de leite com um pedaço de bolo sendo levado por mãos carinhosas no quarto da jovem que se recolhe, agasalhada e com um livro nas mãos é retalho da memória de um filme que vi há muitos anos atrás. Enquanto isso, na vida real, junto à parede úmida, perdi o sono, acordei fora de hora e nos trinta minutos preciosos que restam para meu corpo ainda cansado, imagino o quanto seria melhor ficar encolhida na cama, bem quentinha, ao invés de marchar para o trabalho. A chuva concreta molha um pedaço de mim e de meu lençol gasto. De olhos abertos, sonho com minha mãe de cinema.

2 comentários:

Roney Maurício disse...

Ei Elianinha,
tô votando nesse continho aí; tá me parecendo muito promissor.

(o texto de baixo não pode ser votado. É como quadro de museu, jóia de exposição, carro de feira de automóveis, modelo das mesmas feiras: não podem ser comprados; só apreciados...)

Anônimo disse...

Esse texto. Lindo. Lembro.
beiijosss