sexta-feira, 11 de abril de 2008

Pássaros num filme de suspense

Quero fazer poema para cegos. Talvez não seja exatamente um poema transcrito em braile ou outro sistema tátil. Tampouco quero escrever um poema que um cego possa ouvir. Quero escrever um poema para uma pessoa cega. Um poema impossível de ser lido. Um poema que, sem ser lido, diga algo para o cego que não vai ler. Neste poema, eu diria ao cego todas as coisas que nunca entendi. Vou declarar no poema medos inconfessáveis. Vou preparar uma lista de imagens estranhas e desconexas. Apoiada na cumplicidade do leitor que não vê, farei um poema monstruoso. No espaço deste poema, desenharei pessoas com várias pernas, e estas pessoas serão ágeis. Vou contar histórias de amores que não doem. Os cegos vão acreditar nisso. Direi a eles que compreendo um assassino. Direi também que admito as perversões dos meus amigos que se julgam dignos. Neste poema para não ser lido, posso fingir que desejo vários homens. Isso me isentará da ilusão romântica do amor gêmeo, do amor único. Os cegos saberão que tenho medo de morrer hoje e saberão ainda que há dias em que morrer seria a opção mais confortável. Para os cegos, vou dizer que este dia que nasce, precocemente, diante da minha janela, na forma deste espetáculo óbvio de sol e pássaros, vou dizer a eles que este dia me assusta. Tenho medo da bagagem dos dias e só um cego vai me entender, quando eu disser que os dias me cansam.

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