domingo, 6 de junho de 2010

A irmã

Mas quem seriam aqueles personagens todos, se aplicada a alegoria ao que se vê? Os monstros seriam o pai, a irmã e até a mãe? Ou os inquilinos? Ou os vizinhos? Os patrões, com certeza. E haveria apenas um deles o correto, o que fora abandonado? E se tudo é alegórico, seria uma luta inglória do bem contra o mal? Ou o mal é a linguagem, e se houvesse apenas uma linguagem comum o inseto seria humanizado? Os teóricos de plantão, orgulhosos de sua própria intelecção exibirão suas interpretações sofisticadas. A história me deixa triste e a alegoria é muito pesada, porque o inseto é tão próximo, a má comunicação e tão próxima. Então sou eu que também me encontro, algumas vezes, sem poder me fazer entender. Uma estranha, apesar de ouvir tudo que me dizem, uma estrangeira numa cidade feliz, com o mar disposto diariamente. E o que me afastaria de Gregor? Ali passou toda a noite, grande parte da qual mergulhado num leve torpor, do qual a fome constantemente o despertava com um sobressalto, preocupando-se ocasionalmente com a sua sorte e alimentando vagas esperanças, que levavam todas à mesma conclusão: devia deixar-se estar e, usando de paciência e do mais profundo respeito, auxiliar a família a suportar os incômodos que estava destinado a causar-lhes nas condições presentes. Como vou explicar para as pessoas que têm bons pais que nem todas as histórias são felizes, e que mesmo as histórias mais tristes têm seus momentos sublimes? Tenho algumas irmãs, mas sei que uma delas seria assim, como a irmã de Gregor. De manhã bem cedo, Gregor teve ocasião de pôr à prova o valor das suas recentes resoluções, dado que a irmã, quase totalmente vestida, abriu a porta que dava para o vestíbulo e espreitou para dentro do quarto. Não o viu imediatamente, mas, ao apercebê-lo debaixo do sofá - que diabo, tinha de estar em qualquer sítio, não havia de ter-se sumido, pois não? -, ficou de tal modo assustada que fugiu precipitadamente, batendo com a porta. Mas, teria que arrependida desse comportamento, tornou a abrir a porta e entrou nos bicos dos pés, como se estivesse de visita a um inválido ou a um estranho. Gregor estendeu a cabeça para fora do sofá e ficou a observá-la. Notaria a irmã que ele deixara o leite intacto, não por falta de fome, e traria qualquer outra comida que lhe agradasse mais ao paladar? Se ela o não fizesse de moto próprio, Gregor preferiria morrer de fome a chamar-lhe a atenção para o acontecimento, muito embora sentisse um irreprimível desejo de saltar do seu refúgio debaixo do sofá e rojar-se-lhe aos pés, pedindo de comer. A irmã notou imediatamente, com surpresa, que a tigela estava ainda cheia, à exceção de uma pequena porção de leite derramado em tomo dela; ergueu logo a tigela, não diretamente com as mãos, é certo, mas sim com um pano, e levou-a. Gregor sentia uma enorme curiosidade de saber o que traria ela em sua substituição, multiplicando conjecturas. Não poderia de modo algum adivinhar o que a irmã, em toda a sua bondade, fez a seguir. Para descobrir do que gostaria ele, trouxe-lhe toda uma quantidade de alimentos, sobre um pedaço velho de jornal. Eram hortaliças velhas e meio podres, ossos do jantar da noite anterior, cobertos de um molho branco solidificado; uvas e amêndoas, era um pedaço de queijo que Gregor dois dias antes teria considerado intragável, era uma côdea de pão duro, um pão com manteiga sem sal e outro com manteiga salgada. Além disso, tornou a pôr no chão a mesma tigela, dentro da qual deixou água, e que pelos vistos ficaria reservada para seu exclusivo uso. Depois, cheia de tacto, percebendo que Gregor não comeria na sua presença, afastou-se rapidamente e deu mesmo volta chave, dando-lhe a entender que podia ficar completamente à vontade. Todas as pernas de Gregor se precipitaram em direção à comida. As feridas deviam estar completamente curadas, além de tudo, porque não sentia qualquer incapacidade, o que o espantou e o fez lembrar-se de que havia mais de um mês tinha feito um golpe num dedo com uma faca e ainda dois dias antes lhe doía a ferida. - Estarei agora menos sensível? Pensou, ao mesmo tempo em que sugava vorazmente o queijo, que, de toda a comida, era a que mais forte e imediatamente o atraía. Pedaço a pedaço, com lágrimas de satisfação nos olhos, devorou rapidamente o queijo, as hortaliças e o molho; por outro lado, a comida fresca não tinha atrativos para si; não podia sequer suportar-lhe o cheiro, que o obrigava até a arrastar para uma certa distância os pedaços que era capaz de comer. E muitas vezes na vida, fui a irmã, porque adivinhei a fome de meus amigos, mas nem sempre adivinharam a minha. E nem sempre entendi o que me pediam, nem sempre fui capaz de perceber que meus legumes mais frescos não eram o presente para quem precisava de queijos mal passados. No meio da dor de Gregor, Kafka vai colocando também o sublime do amor, o sublime de sempre haver alguém na nossa vida como esta irmã, que escuta, que se conecta, que se vincula. Esta não é minha cidade, ou é minha e é estranha, ou ainda, serei eu a estranha na cidade? Ou tudo isto é apenas a má interpretação de uma pessoa encoberta pelo anonimato?Me sentirei menos inseto quando sair daqui? Ou quem sabe, receberei o olhar cansado da irmã que cansou do brinquedo? Eu, seria a mesma em outra cidade? Eu serei a mesma apesar de todas as cidades guardarem sempre irmãs, insetos e equívocos? Uma irmã vista de longe pode ser tão bela. E de muito perto, seria crueldade o gesto de enxotar, desprezar, trancafiar o que lhe parece monstruoso? Em cada cidade, proliferam os ruídos. O trânsito desumaniza ou revela mais ainda o que, sendo pressionado ao limite, emerge dentro dos automóveis? Quem buzina, ensandecido, já trouxe flores e mel para alguém? Depois os três deixaram juntos o apartamento, coisas que não faziam havia meses.

2 comentários:

Anônimo disse...

cuidado con la mal interpretacion
bjs

Celso Andrade disse...

Belíssimas tus palavras, vou seguindo, me encntrei por aqui.

Abraço,

Celso