sábado, 14 de junho de 2008

Habilitação

A estrada reta hipnotiza. Dentro do objeto de locomoção, seu corpo segue, em estrita conformidade. Ainda que este objeto se mova para trás, seu corpo está sempre virado para frente. Um corpo inflexível, fixado na mesma posição e velocidade. O objeto se move depressa, e seu corpo está sempre parado. Para vencer distâncias o corpo do objeto se move em manobras arriscadas, em manobras antigas, bem treinadas, adivinhadas. Uma estrada reta descansa a guerra entre seu corpo e o objeto móvel. Na trégua que vence quilômetros, um feitiço é iniciado. O comando do corpo cede. Sente-se confortável, protegido por um colo acolhedor. A estrada não resiste, a estrada não atraiçoa, a estrada não exige esforços. Objeto e corpo esquecem o trânsito complicado e as lutas. Esquecem do próprio itinerário. E o destino é apenas o futuro, indefinido, fim de estrada. Fim da guerra, sono profundo e morte súbita.
As curvas na estrada fazem a guerra. Distorcem a regularidade e perturbam a harmonia quase simétrica da linha reta. A curva é a discórdia. A curva exige que você obedeça, que você se adapte. A curva exige que você seja o delator, a curva exige que você cuspa no prato que é a linha reta, o seu alimento regular. Ao abrir o jornal, muitos acreditarão na morte acidental, quando, finalmente, objeto e corpo perderam o controle na curva. A curva quer que você se renda. A curva quer derrubar sua coragem. E é por isso que você delira na hora da curva e se assusta com seu desejo e ousadia. Você deixou a família em casa. A escolha é sua. Você encontrou seu inimigo. Sabe muito bem que ele deseja sua rendição e covardia. Ainda uma vez, para enganá-lo, você reduz a velocidade e força um movimento que não é natural. Os pneus falam alto. Alguns instantes depois, o ambiente está normalizado e dentro dos parâmetros estabelecidos. Mas você descobre seu próprio limite. Vê a placa de advertência e sorri, orgulhoso. Não importa o final nas manchetes. Não importa que seja um poste ou um muro ou uma vala, que economizaria despesas de transporte de seu corpo imóvel. Esta é a última curva a lhe dar ordens.

2 comentários:

Anônimo disse...

Eliana, Eliana, Eliana...

tu estás escrevendo feito gente grande, menina.

Anônimo disse...

Está tão lindo e eu me perco nas curvas, não sei comentar.
Beijos