quinta-feira, 20 de março de 2008

asfalto

Aos pés do meu abismo, eu já olhava o amor, como quem olha um corpo destroçado após o atropelamento. Os olhos atônitos boiavam, sem destino, no corpo do motorista. Deixou o ônibus e sua âncora. Estranhamente, não gesticulava, não tomava providências, não se defendia, temendo a punição dos patrões. Era agora uma criança e dizia: eu não tive culpa, eu não tive culpa, eu não tive culpa. E esta frase, repetida sem fé, distorcia sua humanidade, porque envolta de catarro e lágrimas que ele não retirava. Desenho da feíura. Dor feia. Dor faca. O corpo morto, ali exposto, sem intenção alimentava alguma morbidez, imprimia a energia do choque em alguma pessoa portadora de uma existência oblíqua. O amor, outrora, nossa companhia, virou coisa de arena. Briga surda num beco sem luz alguma. Como quem vê o algoz do amor, eu via, de longe, seu gesto incisivo, corte impensado. A primeira faca, insatisfeita, tinha fome. Os golpes seguintes diziam: vingança, medo, ciúme. Monto esta vitrine e a memória eu classifico com cartões coloridos. Minha coleção de objetos, permanente pesquisa, fatos combinados de amor e coisas quentes. O amor nos olhos soltos do atropelado, o amor nos olhos partidos do motorista. Sobre nossas cabeças o arsenal de facas se oferece, sem assombro, tão útil quanto monótono. O amor.

Um comentário:

Anônimo disse...

Putz, Eliana,

quase emendei com aquele conto que você publicou aí na Bahia. Percebi, a tempo, que tratava-se de outro tema.

Não vou rasgar mais seda: show de bola da baianinha...