quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

os acontecimentos naquela casa - conto 1

nota de abertura
Cinco horas. Quase fim de tarde. Minha irmã e eu estamos apreensivas. Já limpamos tudo o que sujamos enquanto brincávamos. Nos fundos de nossa casa, nossa mãe montou um salão de beleza. Minha irmã viu o lugar onde a manicure escondeu as revistas que uma freguesa trouxe. Minha irmã escutou as risadas e os gritinhos das mulheres enquanto olhavam as gravuras indecentes. Colocamos as revistas com fotos de sexo explícito no mesmo esconderijo. Minha mãe dorme e nós queremos que ela continue dormindo. Este é, então, um raro momento em que a casa fica quieta. Mesmo que o cachorro esteja latindo, ainda que haja vizinhos brigando e vendedores de gás gritando lá fora: Olha o gás! Olha o gás! Nós duas sabemos que a mãe dorme, mas não descansa. Agora que nosso padrasto trabalha e dá dinheiro suficiente para ela ficar em casa, ela pode dormir de dia e isso é uma extravagância. Eu diria melhor, é uma novidade na vida dela, que sempre foi tão dura. Quer dizer, mesmo que ela durma mas não descanse, poder dormir de tarde é melhor que a vida anterior: acordar de madrugada, pegar ônibus e trens lotados, viajar em pé, sentindo tonturas de fome, trabalhar em casa de famílias durante o dia, só parando para comer as sobras do almoço e ir para outro trabalho, em um restaurante, à noite, chegar em casa bem tarde, dormindo em pé nos trens e ônibus lotados. Chegava, comia os restos que trazia do restaurante, ia lavar e passar roupas das filhas, escutar sermão cruel da mãe exigente e desabar seu corpo exausto, na cama apertada que dividia com as meninas.
Sabemos que ela vai acordar de péssimo humor e vai encontrar algum motivo para ficar explicitamente nervosa. Talvez decida bater em uma de nós ou vai nos obrigar a fazer alguma atividade doméstica. Se em casa não tiver carne para o jantar, porque falta dinheiro, uma de nós vai ser escolhida pra fazer algo que nós odiamos: ir até à casa de um vizinho adulto e pedir dinheiro emprestado. Este é pior castigo. Se o vizinho estiver sozinho ou bêbado, vai querer abrir nossa blusa ou apertar nossos seios pequenos. Não sei como termina esta história. São apenas duas meninas pobres e felizes, que aguardam que a mãe desperte de seu descanso vespertino. Nenhuma delas sabe qual será o próximo acontecimento naquela casa.

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