terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Correio feminino

Ela vestiu aquele, o amarelo florido. Presente de aniversário. Pérolas. Escarpin.
Saiu de casa, tomando ares de boa moça, lembrando sempre do saldo da conta bancária.
A indenização por anos de tortura permitiu-lhe um visual novo, decidido, comprado. Design barato, de afetação e quase escâdalo. Restos de um curso de ballet nunca terminado, as leituras inumeráveis nos consultórios.
Hoje, ela queria ser frívola. Dia de marcar o compasso da futilidade nos saltos altos. Estranho usar uma cor de rosa nos pés. No ar condicionado e fictício do shopping, estaria livre do suor e nenhum vento ameaçaria o arranjo óbvio dos cabelos. A joalheria reluzia. Os funcionários se exibiam, na grotesca submissão de cachorros. O valor das peças dava a eles uma capa de verniz e valor. Ostentando as cifras, coreografando o andar, para não cair, sentou sem pressa. Uma água? Um café? Deseja alguma peça em especial? Que belo vestido e uma fieira de frases de cão, até que lhe deu vontade de dizer: retira meus sapatos e lave os meus pés. Olhou distraída, véspera de um assassinato de algo. Resoluta: a peça mais cara. Desculpe, pode me explicar melhor. Não, o problema é seu. Surdez? Debilidade? Passou a escandir cada sílaba, entre dentes: quero a peça mais cara. Mas, senhora, seria um anel, um colar? Grito quase surdo. Prefiro falar com pessoa mais preparada. Quer que eu repita. Traga, agora, a peça cuja etiqueta tem o valor mais alto. Entende? Mais zeros, mais casas decimais, mais números. Espera outra deixa, ensaiou outro texto, perdeu-se. Olharam-se. Ensaiou a partida. Pensei que você trabalhava por comissão. Tenho pouco tempo. Trouxeram. Um colar. Nem viu. Embalagem para presente. Na saída, uma mulher, como ela, ares de cansaço, desistindo. Recebeu o presente. Os da joalheria, pasmos. Cheios de óhs, donos de uma história que iriam contar para os netos. Ou não. Pensamentos voavam. Leveza.

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