sábado, 3 de novembro de 2007

Ele tem cabelos longos, amarrados por um elástico preto

Chega o diretor. Tem nas mãos algumas folhas já bastante amassadas. As olheiras e o cabelo desalinhado, mal amarrados atrás, denunciam a noite passada a ferros. Sei que está de mal humor e tenho certeza de que serei a vítima de seus desgostos. Sem mesuras ou cumprimentos, pede o café de sempre. A assistente vai para trás do palco, há uma cafeteira perto da coxia, junto ao bebedouro. Ele escolhe uma posição insólita dessa vez. Enquanto se dirige à última fileira, seguido pela assistente servil, que luta para acompanhá-lo sem derrubar o café, ele vai falando comigo, na voz impostada, cheia de crueldade: A senhora pode subir ao palco. No meio de todo meu nervosismo, consigo rir da minha primeira aula de teatro, quando soube da existência mítica da velhinha surda, que ia a todas as peças de teatro. Se um ator conseguisse fazê-la ouvir o texto, o público, gozando de perfeita saúde auditiva, ouviria também. Nos divertíamos muito, eu e meus amigos, ao tentar imitar, cada um a seu modo, a tal da velhinha surda. Houve até um campeonato, para saber quem seria capaz de fazer uma velhinha surda mais engraçada.
Tremores pelo corpo todo. Não podia vê-lo, pois estava sem os óculos de grau, que não cabiam no personagem. Sem poder vê-lo, sua voz era a única forma de contato e aumentava ainda mais o medo. Lá fora, mais de quarenta candidatas a fazer o papel de Yerma. E eu, tentava a todo custo esquecer Gabriela, minha filha pequena, para manter contato com a emoção de uma mulher estéril.
A voz, novamente: então, a senhora tem a ousadia de vir fazer um teste para uma personagem como essa, a senhora, ainda cheia de espinhas mal curadas da puberdade? A senhora, quer, por acaso, me fazer perder tempo? Por acaso lhe parece que tenho tempo sobrando? Tremores, nervosismo e aquela coisinha pequena, já velha conhecida, se avolumando, virando um bolo na garganta. Ele: e a senhora vai me fazer esperar por mais quantos minutos por uma resposta? A senhora por acaso pensa que merece um tratamento diferenciado? A senhora pretende usar o tempo das outras senhoras que aguardam lá fora? Se a senhora desistir agora e desaparecer do meu palco, levando sua figura patética, posso acreditar que há um mínimo de inteligência nessa sua cabecinha coberta por esses cachos desarrumados. Por acaso lhe ensinaram que as atrizes não devem pentear os cabelos?
Todas nós sabíamos dos tiques, das idiossincrasias. Todas temiam estar no meu lugar. Éramos um seleto grupo de 40, peneiradas entre quase 300 candidatas. Eu estava perdida. O choro anunciado já era visível na primeira lágrima incômoda. Um clarão lá longe, talvez na última fileira da parte de cima, alterou o ritmo do meu corpo. E depois disso, não tive mais controle da situação. Tirei os sapatos e os brincos. Meus anéis também foram largados no chão. Chorei, quase convulsivamente, por algum tempo. Havia catarro escorrendo pelo nariz e isso me obrigou a pensar. Passei a manga da blusa, para limpar o rosto. Olhei para o rosto da velha, e seus olhos me desafiaram. Yerma chegou, amarga, sem esperanças, uma ameixa seca e sem uso. Falou das suas dores, mostrou o brilho nos olhos ao imaginar o filho que jamais teria. Deve ter dito alguns impropérios. Yerma não falava mais o texto de Lorca. Yerma estava desbocada, cheia de raiva e de vinho. Eu saí correndo, só tive tempo de pegar a bolsa. As outras atrizes queriam saber o resultado, queriam dicas, saber como ele agia, se aceitava improvisação, se fazia perguntas sobre outros personagens. Enquanto isso, eu já estava na porta, cheia de vergonha e decidida a desistir, para sempre, de ser atriz.

Um comentário:

Paula Lice disse...

Obviamente, amei este post! Bom matar a saudade de tu por aqui! Muitos beijos!