quinta-feira, 31 de maio de 2007

Rubricas de Nelson

Rubricas de Nelson, por Eliana Mara

Em homenagem a outra aquariana e nova atriz, Natalia Ribeiro



Passei as últimas 72 horas aqui, nesta sala quase jaula. Esperei as notícias do advogado da família. Meu direito ao telefonema ainda está sem uso. Preciso decidir quem será a última pessoa a me ouvir falar.
Pedi jornais velhos. Tenho diploma de nível superior e minha irmã pode trazer comida boa. E trouxe os jornais. Todos os jornais do dia. Cola e tesoura. Agora, eu estava presa e não havia mais motivos para ter pressa.
Diário de três noites sem sono, de Elizabeth Bishop


[usarei as rubricas]

(começa o interrogatório): a atriz está sentada diante da platéia atônita.

(as roupas pessoais são etiquetadas): o banho está frio, apesar de tudo.

(cabelos compridos não são permitidos): toda tesoura de cadeia precisa ser afiada.

- Mais uma filhinha de papai!
- Pois é, colega. E agora os jornais começam a falar neste assunto.
- Será que vamos aparecer no Globo Repórter?
- Depende. Essa aí tem grana mesmo ou é só mais uma intelectualóide?
- Sei não... Você tem razão, se for intelectual, a mídia esquece logo. Mas se for filha de rico, vai durar meses.
- É, e se não tiver nenhuma transferência, podemos até aparecer nos noticiários.
- E aquela sua amiga da 34a? Ela ainda vende maquiagens da Avon? Por segurança, vou guardar um estojo aqui.

Vou tentar te explicar na volta de minha viagem. Espero que você me entenda. Eu pedi um prazo e sei que você vai me ajudar nesta fase. Preciso desse tempo para cuidar da Milena. Ela é muito frágil e não sei como fazer para acabar nosso namoro. Preciso da sua discrição. Prometo que depois te darei a atenção que você precisa. Conforme combinei com você, depois dessa viagem para a Europa, estarei atolado de trabalhos e a empresa vai me exigir muito. Nesse tempo, é melhor que fiquemos afastados. Você sabe que eu não consigo lidar com duas situações ao mesmo tempo. Você é uma mulher admirável e sei que você vai encontrar um homem melhor do que eu. Então, nos falamos daqui a uns três meses. Beijão.

[usarei as rubricas]

(começa o interrogatório): a paciente tem aparência catatônica.

(as roupas pessoais são etiquetadas): o banho está quente, mas agora não faz a menor diferença.

(cabelos compridos não são permitidos): essa cena aparece em muitos filmes, mas pode chorar porque neste caso é verídica: as lágrimas deslizando pelo seu rosto impassível e cabelos que caem sem parar.

Estou aqui diante da tela e vejo o desfile das fotos que aparecem na página que ela inaugurou para expor as fotos da viagem. Ela é fotógrafa profissional e tenho vergonha de minhas fotos sem enquadramento e com reflexo avermelhados nos olhos de amigos e parentes. Tenho todas as senhas dele. Acompanho diariamente as trocas de emails com os amigos do casal. Ele mentiu para mim de todas as maneiras possíveis e agora não sinto nada. É estranho. Tem três noites que não durmo. Acompanho o fuso horário do casal em lua de mel. Consegui a chave do apartamento dele. A identidade falsa é perfeita. Nenhum porteiro tem paciência para esses detalhes. Estou aqui, neste apartamento que me machuca em todos os ângulos. Na geladeira, tem fotos, obsessivas. Fotos que contam um amor forte, passional. Dentro do guarda-roupa dele, num canto reservado da porta, fotos íntimas. Mural de fotos picantes. Agora, no chão da sala bem encerada, tenho um mural gigantesco. Cada foto é um golpe. Cada pose é uma facada. Mas nada diminui o tamanho do bolo que está nesta garganta seca. Mas chorar, chorar até cansar, isso é tão pouco. Eu preciso de mais do que isso. A dor de cabeça não passa nunca. Desde o embarque deles. Usei uma peruca de cabelos pretos e curtos. Bem distante dos cabelos longos e loiros que ele sempre adorou. Coloquei uma roupa esportiva, tênis, uma touca de lã. E daí, que eu estava usando óculos escuros de noite? O embarque internacional era o corredor da morte. Como sempre, ele chegou com duas horas de prazo. Sempre organizado, sempre metódico. Uma hora e meia depois, ela chega. Radiante, feliz e acompanhada. A mãe, a irmã e duas colegas da empresa. O namoro público que rendeu uma comunidade na internet: queremos ser madrinhas do casamento de Milena e Rogério. Eu entendi a expressão “engolir sapos” porque cada surpresa dessa mentira me atacava como um objeto assim, feito um sapo, que eu era obrigada a engolir sem cara feia e sem ruídos. Ele fez o check-in logo cedo. Achou tempo para comprar flores e chocolates. Atendeu o celular e falou com ela como se fosse um bobo, um jovenzinho apaixonado, sussurrando os apelidos irritantes: vem logo, gatinha, que seu nenê está doidinho de saudade. Isso eu ouvi, de perto, folheando umas revistas sem nome, na mesma livraria do aeroporto onde ele me disse que eu era a mulher da vida dele e Milena nem tinha conseguido sequer arranhar seu coração.






VÔO 1877 DA VARIG – ÚLTIMAS CHAMADAS

Eles embarcaram. A mãe e as amigas foram para o estacionamento, dando gritinhos de inveja. Eu estou aqui, parada, e não sei como mover meu corpo. Vim de carro. Vou chamar um táxi. No meu apartamento, só o necessário porque esta viagem é curta. Deixo algumas instruções para que os peixes sejam alimentados. O mesmo táxi me leva até o apartamento dele. Eu estou aqui, parada, e não sei como mover meu corpo. Olho para a garrafa bonita. O vinho tinto começa a fazer efeito. Talvez eu esteja embriagada. Levanto agora e busco alguma coisa na geladeira. Hora terrível para ter fome. Sempre fui assim. Desejava ser igual a minha irmã mais velha, que na hora do sofrimento simplesmente perdia o apetite. Bolacha salgada. Vinho tinto de outra garrafa. Eu estou aqui, parada, e não sei como mover meu corpo. Eu sei tudo que preciso saber. Eu sei tudo que não poderia saber. Eu já perdi tudo. Não sei como mover meu corpo.

Por favor, posso fazer meu telefonema agora?

[vou usar as rubricas]

(voz seca) Mirian, dentro da minha agenda tem um envelope que explica tudo. Fique com o envelope, aconteça o que acontecer.

(voz embargada) Mas Suzana, eu vou te visitar amanhã. De manhã, vou te levar um café da manhã do jeito que você gosta e vamos resolver tudo. Vai dar tudo certo. Você tem diploma e vai ter habeas corpus. Talvez dê para conseguir a fiança.

(voz rígida) Mi, por favor, saque todo o dinheiro da minha conta ainda hoje.

(voz embargada) Suzana, você não está me ouvindo?

(voz sumida)

Um comentário:

mari celma disse...

Ah,encontrar as Rubricas aqui foi muito bom! Que venha outras...outros...conte...contos.