terça-feira, 5 de março de 2024

abertura os acontecimentos naquela casa

 

Os acontecimentos naquela casa

 

Tentando fazer um cálculo rápido, usando estratégias para multiplicar o número de janelas horizontais pelo número de andares, querendo chegar a um valor numérico aproximado, multipliquei pelo número de famílias, usando cinco como uma média razoável. Cinco pessoas em cada janela. Mas nesse conjunto habitacional da periferia de São Paulo, onde minha tiA ‘estava morando, feliz por ter se livrado do aluguel, dentro de um financiamento com juros baixos se comparados com os juros de agiotagem que os bancos cobravam, os apartamentos mínimos eram habitados por famílias numerosas, com seus agregados. Todo dia, praticamente, chegavam pessoas com malas e sacolas, vindo de outros bairros ou outros estados. Muitos nordestinos, vindo do ciclo perverso do êxodo. Então, se a média ficasse entre cinco e oito, o cálculo se alterava. Perdi as contas mas já eram milhares. Na lógica do formigueiro, era madrugada quando saiam dos buracos, carregando folhas e pedrinhas, pesos maiores do que os corpos. Essas formigas caminhavam, sob o efeito de uma alucinação. O sono interrompido. A noite mal dormida. O cansaço acumulado. Um exército obediente, em fileira ordenada, em direção aos espaços de tortura, nos subempregos, em condições precárias, com as marmitas chacoalhando nas mochilas surradas. Passar o final de semana na casa da minha tia era um tempo de descanso. Ali, a ordem da minha mãe não vigorava. Ali eu podia até estudar, distante da infância em que essa mesma tia exercia sua tirania e violência. E no apartamento mínimo e arrumadinho, tudo limpo e organizado, com cheiro bom de mãos zelosas, eu conseguia até dormir melhor.

Algum resquício de culpa fazia com que minha tia se desdobrasse em carinho. Fazia comidas boas. Fazia um manjar com calda de ameixas, que eu gostava tanto mas que em casa era substituído, para meu desgosto, pelo pudim de leite de minha mãe. Era o melhor pudim de leite das redondezas, as vizinhas pediam a receita e voltavam para obter dicas, nem sempre funcionava da primeira vez. Queriam saber qual era o segredo. Eu não poderia me dar ao luxo de perder uma sobremesa. E comia, com enjoo, o pudim de gosto horrível. Eu detestava tudo naquele pudim. E detestava ainda mais o fato de minha mãe sempre fazer o mesmo pudim. Com o valor dos ingredientes, seria possível fazer o manjar, minha tia sempre dizia isso pra minha mãe. E a resposta era sempre a mesma: se a Esther é enjoada e não gosta, que coma menos, sobra mais.

Minha tia gostava muito de comer bem. E descobria lugares bons com preços baixos. Pelo menos uma vez no mês, quando recebia o salário, me convidava para comer fora. E a alegria de ver minha tia comendo e tomando sua cervejinha me ajudava a esquecer a tia da infância. Na situação em que eu vivia, essa conta fechava bem. Mais tarde fui entender esses pactos que eu fazia. Aprendi a negociar para resistir. Aprendi a me aproximar do sequestrador e demostrar afeto por ele. Sempre com a esperança de que a violência fosse reduzida. Os dias de ficar na casa da tia Rosa eram dias de alívio, dias de alguma alegria.

Aos dezessete anos, frequentava muitos espaços de arte e aproveitava, com meus amigos, aproveitar o que a cidade oferecia. Campanhas de gratuidade, convites, carteirinha de estudante. Tudo que nos permitisse ver filmes, óperas, peças de teatro, eventos, palestras, shows. Muitas vezes os ônibus para nosso bairro acabavam e era preciso esperar até o dia amanhecer para chegar em casa. Sempre avisei em casa. Não podíamos pagar por uma linha telefônica. Era preciso confiar. E eu era uma adolescente confiável. Me surpreendeu muito ter chegado cansada e faminta em casa e ter sido recebida pela fúria de minha mãe. Aos berros, ofendida e destemperada, usava palavrões para criticar minha vida: você está parecendo uma puta, vive com esses amigos drogados, com essa historinha de movimento cultural, movimento cultural é o cacete, desculpa esfarrapada para fazer merda, e nessa casa quem manda sou eu e se você não seguir minhas regras pode pegar seus paninhos de bunda e ir embora. Respondi, mais cansada do que a fim de entrar na briga, que eu não estava mentindo, que já tinha avisado, que o movimento era importante, e antes de falar mais recebi o tapa, que deu início a um domingo de horror. Foi no quarto, quando eu tentava trocar de roupa, enquanto ela gritava, que tudo aconteceu. Ela trancou a porta, já com o cinto grosso do meu pai. Lá fora, minhas irmãs batiam na porta, pedindo que ela abrisse. Eu sabia que a surra ia ser das piores. E decidi, com uma sobriedade desconhecida, apenas receber os golpes. Que vieram sem hesitação. Apanhei muito, sem me mover, sem dizer uma palavra. E por dentro, repetia para mim mesmo: vou sair daqui.

 

 

 

 

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