sábado, 23 de junho de 2007

Dia de limpeza geral: como é que cabe amor num corpo que não libera seus ódios?

Estou rasgando o manual das boas maneiras.
E só vou lembrar da sua ausência, pensando que afinal de contas, viver sem você dá menos trabalho. Não me olhe mais assim, esperando que exista alguém neste território.
Estou bem farta mesmo. Não há ser humano melhor do que eu. Eu sou minha ilha, meu reino e sou meu guia. Se eu gostar do que você me faz, vou dizer que você cumpriu com sua obrigação. Se eu detestar suas maneiras de bicho acuado, sempre aquela criança ferida e barulhenta, pedindo sem parar, eu vou deixar você falando sozinho.


Antes, a máquina me ajudava. Havia o som correspondente para cada tecla e as palavras pareciam coisas. O barulho hipnótico ocupava o espaço e nenhum silêncio faca caía sobre mim. Sabe o silêncio que corta? O silêncio habitado por duzentas e dezenove decepções.
Toda vez que eu me distraio, caio no buraco da calçada. Mas a calçada é a mesma e o buraco é cotidiano. Então, porque finjo que estou caminhando numa calçada, a mesma e desconheço o buraco. Para me surpreender e ter a ilusão de que o futuro pertence a Deus?

Não existe futuro.
Existe apenas a repetição esperada dos destinos humanos. Observe que é possível fazer um menu, uma tabela fixa de prováveis finais para sua vida. E de prováveis inícios. O mais complicado a gente transforma em realismo mágico, que é uma forma poética de fazer ficção científica.

Escrever sobre a vida de um homem é muito semelhante ao trabalho das seguradoras. A seguradora mensura, qualifica e dá valor a acontecimentos. Nas apólices, há previsão para mortes acidentais, morte em país estrangeiro, morte súbita, morte por assassinato, morte por estupro. O convênio prevê, em termos de números, a possibilidade de você descobrir a doença terminal e morrer em três meses.

Vem um poeta de quinta categoria e escreve um poema lunático, tentando colorir a tela branca e preta: branca, que é a primeira sensação aos olhos de um ser humano nascendo. Preta, que é a suposta cor que este mesmo ser verá quando fechar os olhos. Antes de nascer e depois de morrer, (que é tudo que encerra o intervalo da vida humana), não temos notícias de nuanças coloridas.

Os filhos apressados, os amigos covardes, as injustiças rápidas, traições veladas, traições ruidosas, traições bombásticas, traições imperdoáveis, o perdão, o amor, a traição, bonecas, papel higiênico, fraldas, discos, lembranças, doenças contagiosas, água, pires que não combina com as xícaras, lista interminável de coisas que cabem no intervalo de vida humana, tudo isso é previsível.

Então, para que os sustos e os desesperos? Se tudo está previsto, por que a gritaria no corredor daquele hospital excelente, por que a alegria ingênua quando o bebê ainda é indefeso e por isso é bom? Por que a angústia pelo resultado na prova, se daqui a alguns anos, tudo pode caber numa nuvem de poeira atirada ao mar? Por que a conivência ou por que o repúdio, se tudo afinal registra apenas o previsível comportamento regular dos homens?

Hoje, o carteiro bateu na minha porta e deixou as contas para pagar. E eu, então, comemoro> Vale a pena viver mais uns dias e aguardar a data de vencimento.

3 comentários:

mari celma disse...

Hoje eu passei aqui, na sua praça, e percebi um canteiro novo. Nele há dois tipos de flores: amores-perfeitos e sempre-vivas. Me fez um bem enorme topar com essas flores inéditas.Sua praça não tem táxis, nem meninos escondidos prontos para pularem nos donos dos carros estacionados e cobrarem pelo serviço de guardador. Na sua praça não tem poste faltando lâmpada, na sua praça a fonte luminosa é limpa, sem musgo. Na sua praça casais se sentam e esquecem o trânsito,na sua praça até mesmo o céu paulistano consegue ficar rajado de margenta e azul no final do dia. É um lugar que não se deve deixar nunca de visitar.

Aline Câmara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Aline Câmara disse...

Eliana...
Por mais que eu saiba que tudo é tão previsível...ainda tenho a cara de pau de me decepcionar com coisas,pessoas..acontecimentos. Sabe aquela conta que vai chegar, vc sabe que ela vai chegar e mesmo assim se finge de surpreso quando abre a correspondência? ou aquela pessoa que lhe decepciona sempre e por mais que vc tente sempre se manter pronto para a próxima, quando a próxima acontece você simplesmente morre!!!
Vixe...
como faço para aceitar o que é tão previsível com naturalidade?